Nipocultura: a cultura japonesa ao seu alcance

A alma do povo japonês | Conseqüência nas artes

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Diferentemente da concepção ocidental, representada no Velho Testamento, na expulsão de Adão e Eva do Paraíso, quando a natureza passou a lhes ser hostil, o japonês, ao contrário, se sente respeitoso, grato, íntimo, uno à natureza. Sente gratidão respeitosa quando a usa para si. Se destrói árvores costuma erigir um pequeno santuário no local em agradecimento. Como primitivos indígenas, vive em harmonia com o meio em que vive.

Ao longo dos tempos o ideário religioso foi absorvido pelo senso artístico deste povo, e a arte produzida retrata fortemente essa influência.

O amor xintoísta à natureza faz com que o japonês, em seus espaços restritos, procure trazer elementos ou signos que a representem para conviver com ele no lar. O naturalismo dos elementos está presente nos jardins japoneses como a miniaturização das plantas (arte do bonsai), o lago com carpas coloridas, rochedos representando montanhas e pedrinhas brancas paciente e harmonicamente arranjadas no terreno. Neste arranjar, tal como as águas de um lago, há a idéia budista da mutabilidade da vida e o fazer, expressão máxima do ser, do zen-budismo.

O amor xintoísta à natureza é tema da pintura, da composição dos jardins, da literatura, da poesia haikai, cuja estrutura e significado, vale dizer forma e conteúdo, é o que existe de mais representativo na literatura do ascetismo minimalista zen. Quando a Restauração Meiji de 1868 permitiu aos comuns do povo a utilização de sobrenomes, distinção antes privativa apenas das classes mais ricas (clero, nobreza, classe guerreira, alguns comerciantes e lavradores), houve maciça adoção de sobrenomes com elementos da natureza.

A idéia budista da impermanência da vida, da perecibilidade, da transformação constante da realidade aliada a concepções de representatividade xintoísta de céu, terra e homem, estão presentes no arranjo de flores (ikebana), cujas plantas são arranjadas sob critério estético e de significados, mas sem raízes, para que as apreciemos enquanto durem, tal qual nossa vida; nos jardins japoneses, cujas pedrinhas, que representam a água, são feitos e refeitos a qualquer momento num ritual que envolve exercício físico, quebra do intelectualismo pelo esvaziamento da mente e a “meditação” do nada, porque o importante é fazer porque assim se é. A efemeridade é permanente, não o homem.

A doutrina zen do ser e fazer são uma só coisa, está claramente espelhada nas regras do sumiê (pintura minimalista japonesa) e no shodô (arte da caligrafia), onde os traços são feitos apenas uma vez, sem reflexão, nunca retocados ou repetidos.

Para este povo, cuja alma foi moldada na intelectualidade budista e no espiritualismo xintoísta, toda arte é mais do que o exercício da arte: é caminho para o equilíbrio e a paz interior. Sem paz de alma não há arte, sem espiritualização não há arte, sem equilíbrio não se produz arte. A arte está em harmonizar os contrários: corpo e alma, céu e terra, o efêmero e o eterno, o material e o imaterial, o máximo e o mínimo.

A realização da cerimônia do chá se faz em ambiente minudentemente minimalista, composto de um jardim, uma sala, um kakemono (papel com dizeres em kanji), e os utensílios para a feitura do chá. A cerimônia obedece aos princípios: harmonia, respeito, pureza e tranqüilidade. A atenção é exclusiva à introspecção: exercício de meditação conducente, pela harmonia dos gestos, rituais, beleza dos utensílios e ambiente minimalista, porém expressivo, à paz de espírito. É onde o japonês pratica a poesia dos gestos. É como uma cerimônia haikai: procura-se, visualmente, o máximo de satisfação estética com o mínimo de decoração, e interiormente, o máximo de paz num mínimo de palavras. Degustam-se, nessas ocasiões, doces de época artisticamente confeccionados, e toma-se o chá, levemente amargo.

Igualmente influenciado pela busca da perfeição, as artes manuais são praticadas dentro do espírito do zen-budismo da busca da perfeição pelo fazer, caminho da perfeição do ser. Dentre todas as artes manuais, a arte do alfageme é a que mais se destaca. O talento e a mestria na construção de uma espada é uma das artes mais respeitadas e admiradas em todo o Japão. A espada era a alma do samurai, natural, portanto, que fosse perfeita.

Nascidas neste ideário ético-filosófico-religioso, as artes marciais japonesas espelham claramente este pensamento filosófico. O respeito aos adversários, a benevolência aos vencidos, a lealdade no combate, a férrea disciplina e o treinamento exaustivo são características que estão na base da formação de qualquer arte marcial japonesa. Como regra filosófica tem-se em mente a harmonia de todas as partes e faculdades do corpo, havendo predominância do espírito sobre o corpo. Toda regra esportiva, elaborada bem depois, em tempos de paz ou com a ocidentalização, reflete estes princípios.