Nipocultura: a cultura japonesa ao seu alcance

Yasujiro Ozu

               

Iochihiko Kaneoya

No horóscopo japonês são 12 os animais, cujos 5 elementos, cada qual com sua característica, repetem-se em sequência. O mesmo animal e o mesmo elemento repetem-se, portanto, a cada 60 anos. Esta ocasião é chamada pelos japoneses de Kanreki que significa “volta do calendário”. É quando as pessoas começam a viver a segunda infância, renascem para a vida. A comemoração do aniversário faz-se vestindo-se o aniversariante com um colete e uma boina vermelhas, lembrando o regresso à alegre infância. Diferentemente de outros aniversários, esse tem o clima alegre, descontraído, leve, descompromissado, como a alma de criança. É quando os avós se fazem criança e começam a doce tarefa de brincar com os netos.

Mas, Kanreki, palavra sempre associada à alegria e a um doce recomeço, para o mundo do cinema japonês, teve sabor de tragédia no dia 12 de dezembro de 1963. Nesse dia, faleceu Yasujiro Ozu, que nascera exatamente 60 anos atrás, no dia 12 de dezembro de 1903. A duplicidade do dia e do mês que tradicionalmente é sinal de bons agouros, dessa vez, abalou a sua credibilidade diante dos japoneses. 

A filmografia de Ozu inclui filmes mudos, em branco e preto e coloridos. Fez 53 ao todo. Passou então pela experiência dos primeiros até os mais modernos, coloridos, com mais recursos técnicos, mas sempre foi fiel à sua concepção de cinema: intimista, tomadas de câmera baixa, conversa entre os atores incluindo o espectador no diálogo pelos gestos e olhares. Ozu era meticuloso, perfeccionista. Instruía olhares, movimento dos olhos, tom de voz, velocidade e simultaneidade de movimentos das atrizes.

Era considerado o mais japonês dos cineastas. Seu tema sempre foi o quotidiano: a família, o conflito de gerações, a velhice, a ciosa urbanidade absorvendo o tempo dos filhos e deixando os pais idosos desconfortáveis dentro da vida moderna (Era uma vez em Tóquio). 

Seu tema era o viver: com suas alegrias, pequenos dramas, preocupações rotineiras, fatos que existem na vida de qualquer família de qualquer lugar do mundo. Seu tema era universal neste sentido. Seu quotidiano não incluía brigas mas descontentamentos; não mostrava violência, drogas, sexo, sequer sugeria erotismo; o assunto crime não fazia parte dos diálogos. Em cenas com tomadas de câmera estática às vezes por longos 8 a 10 segundos em cenas enigmáticas, ainda hoje discutidas pelos especialistas quanto ao significado, talvez Ozu tenha empregado  a força imagética da construção do ideograma kanji ao realizar tomadas de imagens em cenas sem movimento ou  focar longamente objetos, às vezes por ângulos diferentes, sugerindo ideia daí advinda da correlação entre as imagens (Primavera tardia e A rotina tem seu encanto). 

Ozu era minucioso na colocação de objetos em cena. Imagens paradas, enigmáticas mas certamente com alguma mensagem: um par de chinelos desarrumados, o ambiente vazio por alguns segundos antes do surgimento de alguém, um vaso na penumbra sem qualquer conteúdo. Um espaço, um vazio de pessoas entre uma cena e outra. Ma (間), dizem os japoneses. É o intervalo entre uma cena e outra no teatro Nôh, entre os versos de um poema; é o espaço em branco deixado na pintura sumi-ê onde não alcança o pincel. É o vazio dos intervalos necessário à respiração, à reflexão. Ou talvez seja a presença de yuugen, como Keene o define: “o invisível que não pode ser descrito em palavras, apenas captado pela mente”. Como num haikai, talvez Ozu não tivesse explicação lógica para essas imagens: apenas sentia, seguia sua intuição. 

Nos seus filmes não há cenas exuberantes, luxuosas, impactantes, nem movimentos rápidos, da câmera ou dos  atores. São cenas simples, frugais, mínimas mas elegantes e refinadas. Não há velocidade. Como na vida, o amadurecer nos leva a aprendizado que se faz pausadamente com longos intervalos para reflexão. Como disse Ortega y Gasset, temos cada qual nossa circunstância. Ozu não descura disso: a circunstância de cada qual não está desvinculada  do seu entorno. Isso enriquece os diálogos, assume a pedagogia do aprendizado familiar ou apenas revela-nos o quotidiano de problemas familiares comuns. 

Ozu viveu intensamente. Produziu 26 filmes em 5 anos. Entendeu bem a efemeridade da vida, a inevitabilidade do seu fim, a mutabilidade de tudo, a ilusão, a inexistência do Eu. O Vazio. E assim escreveu seu epitáfio: 無 – MU – VAZIO na sua tumba no Cemitério de Kita-Kamakura, província de Kanagawa.

Ozu não viveu sua segunda infância. Morreu no dia do seu aniversário, no dia em que começaria a ser criança novamente. Mas a alma do menino Yasujiro vive em seus filmes: simples, elegante na sua pureza, frugal, poético, de profundo respeito e amor ao feminino: a noiva, a filha, a mãe. Às vezes peralta, crítico da vida dos adultos, se metendo em confusões de rua como toda criança que vive na rua, sofrendo as agruras da pobreza mas deixando  transparecer sempre seu desejo de que todos protagonizem uma convivência serena, pacífica, afetuosa. 

Viver. Apenas viver. Foi a mensagem de Ozu. 

Profunda na sua simplicidade, simples na sua profundidade. 

Tão simples como aceitar convite para uma sessão de cinema com um saco de pipoca ou taça de vinho.

Até a próxima tela, Yasujiro!  

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